Artigo: "Democracia com D maiúsculo", por Humberto Costa

A participação de Lula no processo em disputa pela reforma política será fundamental para levar adiante temas caros ao Partido dos Trabalhadores: financiamento público de campanha, voto proporcional em lista fechada e fidelidade partidária

Foto: Agência Senado

A reforma política entra mais uma vez na pauta de debates do Congresso Nacional, mas agora com um componente novo e animador para quem espera mudanças reais no sistema político-eleitoral brasileiro. A novidade é que bandeiras desde sempre defendidas pelo PT, e muitas vezes satanizadas pelo senso comum, saíram do limbo das utopias e ganharam protagonismo no debate. Entre elas, os pilares da proposta do partido para o sistema políticoeleitoral brasileiro: financiamento público de campanha, voto proporcional em lista fechada e fidelidade partidária. Essas foram algumas das proposições encampadas pela Comissão de Reforma Política criada no Senado Federal, que concluiu a primeira etapa dos trabalhos no dia 13 de abril.
A comissão tem até o final de maio para transformar suas conclusões em Projetos de Lei e Propostas de Emenda Constitucional, para apreciação do conjunto dos senadores. O PT teve intensa participação nos debates, com a presença de quatro senadores – além de mim, integram a comissão os petistas Jorge Viana (AC), Ana Rita (ES) e Wellington Dias (PI). Mais do que intensa, porém, a presença do PT na Comissão de Reforma Política foi altamente produtiva, trazendo para o centro do debate questões fundamentais e arejando um processo que corria sério risco de limitar-se aos temas periféricos.
Graças à representação petista na comissão, pela primeira vez estarão em pauta, fora dos limites dos partidos de esquerda, temas fundamentais como o financiamento público de campanha e a votação proporcional em lista fechada. Esses dois pontos, aliados à fidelidade partidária, representam mais que simples mudanças no sistema político-eleitoral. Representam uma ruptura com práticas políticas tão antigas quanto arraigadas. Nosso sistema político-eleitoral foi construído e moldado para atender aos interesses do poder econômico, amalgamando uma cultura política baseada na centralização, no coronelismo, no assistencialismo e no fisiologismo. Romper com isso significa aprofundar a democracia, ampliar a participação popular e promover mudanças efetivas nas regras do jogo, de forma a criar condições de igualdade na disputa eleitoral e permitir que maiorias e minorias sejam legitimamente representadas nas instâncias de poder.
Foi com essa perspectiva que criamos o PT. Porque entendemos que o partido é o instrumento de representação política e ideológica de um grupo social. E que uma democracia forte pressupõe a existência de partidos fortes e de um sistema político no qual o que tem peso são as ideias. Eu resumiria em quatro pontos os fundamentos da proposta do PT:
– Partidos fortes, para que a população possa escolher entre propostas para a sociedade e para que maiorias e minorias possam se fazer representar;
– Um sistema eleitoral fundamentado no voto proporcional para as casas legislativas, porque isso permite a representação das maiorias e das minorias, ao contrário do “distritão” e do voto distrital puro, que consolidam a representação das elites;
– O voto no partido e em seu ideário, em vez do voto no candidato, por meio de um sistema de lista fechada – o que também contribui para a governabilidade, evitando o paradoxo do sistema atual: vencer uma eleição majoritária sem obter maioria no Legislativo.
– A fidelidade partidária, fundamental para que o partido, que é o instrumento de efetivação da democracia, detenha a posse do mandato.
Outro ponto fundamental é a existência de condições iguais para a disputa. Por que os bem intencionados que defendem o financiamento privado não querem o financiamento público? Porque estão identificados com interesses e posições de um segmento importante das elites. E, se as elites econômicas decidem apostar naqueles que defendem seus interesses, a esquerda está fora da disputa.
Hoje o PT obtém apoio financeiro porque está no poder. Mais do que amar as ideias, as elites amam o poder, principalmente as que dependem da relação com o Estado para sobreviver. O PT, por sua vez, tem um compromisso histórico com as classes populares. Para que ideias distintas possam ser disputadas em condições de igualdade na sociedade, fortalecendo o conceito de democracia, o financiamento público é o único caminho.
No sistema atual, quem não tem dinheiro, mesmo com um trabalho relevante para a sociedade, não tem como ocupar espaço, enquanto outros, sem trabalho, sem relevância, sem construção social alguma, conseguem mandatos para legislar em
nome da sociedade.
Não é preciso ir muito longe para entender isso. Basta analisar o perfil dos doadores de campanha. O doador mais comum não é o cidadão, mas a empresa que tem algum tipo de interesse em relação ao Estado, desde gozar do prestígio de conhecer o governante até mesmo de querer tratamento diferenciado, ilegal, ilícito para obter vantagens nessa relação.
O financiamento público, além de diminuir o risco de corrupção, é mais barato para o Estado. Reduz o número de candidatos, torna as campanhas menos onerosas e elimina a relação promíscua do representante eleito com o doador. Essa é uma questão-chave para o PT. E o sistema eleitoral que melhor viabiliza o financiamento público é a
votação proporcional em lista fechada, por isso optamos por esse sistema.
Com a lista fechada, a campanha é do partido, não do candidato. Elimina-se a disputa entre os candidatos. Se por um lado há o risco de o sistema de lista fechada fortalecer
o caciquismo partidário, por outro é perfeitamente possível evitar que isso aconteça. Por exemplo, com uma legislação que defina claramente como se dá o processo de escolha dos candidatos dentro dos partidos. Com mecanismos que garantam a representação de maiorias e minorias.
No entanto, a defesa do sistema proporcional com lista fechada não pode ser uma obsessão para o PT. Se for possível construir uma alternativa de sistema que preserve a representação das minorias e, ao mesmo tempo, seja compatível com o financiamento público, defendo o debate dessa proposta dentro do partido. Nas próximas semanas, além das proposições aprovadas pela Comissão de Reforma Política do Senado, outras certamente serão apresentadas pelos partidos e discutidas pelo conjunto dos senadores, para, em seguida, ser submetidas à votação.
Ao lado da fidelidade partidária, do voto proporcional em lista fechada e do financiamento público de campanha, a comissão levará ao plenário do Senado as seguintes propostas:
– Redução no número de suplentes de senador, de dois para um; em caso de afastamento, o suplente assume o cargo mas não sucede o titular, só com uma nova eleição; proibição de suplente que tenha parentesco com o titular.
– Nova data de posse: governadores e prefeitos em 10 de janeiro e presidente da República em 15 de janeiro.
– Manutenção do voto obrigatório.
– Fim da reeleição e aumento de quatro para cinco anos no prazo do mandato de presidente da República, governadores e prefeitos.
– Fim das coligações nas eleições proporcionais, mantendo-se a permissão para as eleições majoritárias.
– Fixação de teto para os gastos de campanhas eleitorais efetuados pelos partidos.
– Candidatura avulsa (o que considero a grande contradição da proposta, porque é incompatível com o sistema de lista fechada).
– Manutenção do prazo mínimo de um ano para filiação partidária.
– Proibição de que prefeitos e viceprefeitos mudem de domicílio durante o mandato, para evitar que, após a eleição, possam se candidatar em outro município.
– Manutenção da cláusula de desempenho com os critérios atuais, ou seja, têm direito ao funcionamento parlamentar na Câmara dos Deputados apenas os partidos que tenham elegido e mantenham filiados, no mínimo, três representantes de diferentes
estados.
– Cota de 50% de mulheres e 50% de homens nas listas fechadas.
– Realização de consulta pública sobre o sistema eleitoral.
No caso dos suplentes, pretendo apresentar uma emenda que permita o afastamento do cargo de um senador apenas para ocupar, no Executivo, posto do mesmo nível, ou seja, de ministro. Além disso, a ausência temporária só seria permitida por período correspondente a um mandato do Executivo – se o afastamento for maior que isso, o senador deve renunciar.
No tocante à fidelidade partidária, talvez seja conveniente agregar uma emenda que exija tempo mínimo para a fusão de partidos novos com outros já existentes, para impedir que novas legendas sejam criadas apenas como “janelas” para a migração de parlamentares de um partido para outro.
Tudo isso ainda será objeto de discussão e aperfeiçoamento dentro e fora dos partidos, e é fundamental que a sociedade entre no debate, inclusive pressionando para que esses esforços não morram na praia. Nenhuma reforma política será aprovada pelo
Congresso sem que haja pressão da sociedade.
Para isso, contamos com um ator importante no processo, que tem condições de ajudar a mobilizar a sociedade em torno do tema, por sua credibilidade e por sua capacidade de ser ouvido: o ex-presidente Lula. Ele já está a postos para se engajar em mais esta etapa da luta do PT por uma democracia forte e verdadeira, uma democracia com D maiúsculo.
* Artigo originalmente publicado na revista Teoria e Debate, publicada pela Fundação Perseu Abramo, edição de número 91 – especial sobre reforma política. Humberto Costa é senador da República e líder do PT no Senado Federal, participando ativamente da Comissão de Reforma Política da Casa.